Doutrina da Terra Plana é prática de excluir da psicologia o conhecimento que tenha relação com religiões.
Fechem o CFP
A arte tradicional da dialética, desenvolvida em dois mil e quatrocentos anos de prática filosófica, determina que nunca se deve discutir ou atacar uma tese antes de havê-la compreendido. A experiência brasileira dos últimos anos parece sugerir que esse preceito está superado: cada um se sente tanto mais autoconfiante e imbuído de certeza absoluta ao investir contra uma idéia quanto menos é capaz de compreendê-la e até mesmo de concebê-la. O ideal, mesmo, é ignorá-la por completo.
A nova regra é seguida não só por blogueiros, jornalistas e professores, mas até por entidades oficiais incumbidas, legalmente, de representar a autoridade máxima no assunto ignorado.
O exemplo mais recente é o do Conselho Federal de Psicologia, quando ameaça cassar a licença profissional da psicóloga Marisa Lobo por aplicar técnicas da “psicologia cristã”. A surpresa indignada, o ar de escândalo com que os membros do Conselho falam dessa prática demonstra, acima de qualquer possibilidade de dúvida, que ignoram por completo uma corrente de pensamento que desempenha papel constitutivo e essencial na moderna psicologia. Uma simples consulta ao Google, sob o rótulo “Christian psychology”, teria dado a esses senhores 59 milhões de respostas, mostrando que não se trata de assunto exótico nem ignorado no mundo. No mínimo, no mínimo, ninguém tem direito a um diploma de psicólogo se desconhece as obras de Charles Baudouin, Igor Caruso, Agostino Gemelli, Paul Diel, René Le Senne, Gustave Thibon, Paul Tournier, James Loder, Angus Menuge, Fernando Garzon, René Girard, – e tudo isso é apenas um fragmento do imenso corpus da “psicologia cristã”. Se a expressão soa aos ouvidos daqueles cavalheiros como novidade herética ou enxerto indevido de intenções proselitistas na atividade clínica, isso só revela que eles não têm a menor idéia da coisa sobre a qual imaginam estar falando.
O que inspira o seu horror à “psicologia cristã” é um estereótipo popular já longamente despido de qualquer vestígio de dignidade intelectual. A origem desse estereótipo remonta ao século XIX, quando Kant e Augusto Comte traçaram uma rígida linha divisória formal entre “conhecimento” e “fé”. Há longo tempo essa pretensão legisladora dos dois filósofos já foi desmoralizada, e o foi também por obra de psicólogos eminentes que descobriram, ou redescobriram, o imenso tesouro de conhecimentos psicológicos guardado nos textos dos santos, místicos, profetas e teólogos. Nenhuma psicologia que não integrasse esses conhecimentos, enriquecendo com eles o cabedal das modernas observações experimentais e clínicas, mereceria jamais o nome de “ciência”. Um dos mais enfáticos apelos nesse sentido veio do genial Ken Wilber, em seu Integral Psychology (Collected Works, vol. IV, Boston and London, Shambhala, 1999, pp. 498-505). À pretensão de reduzir os conhecimentos da psique humana ao que dela se obteve pela via experimental moderna, Wilber denomina “doutrina da Terra plana”. A diretoria do CFP compõe-se, ao que parece, de verdadeiros crentes dessa religião. Imaginam que o horizonte da ciência psicológica está circunscrito por aquilo que dela aprenderam em faculdades brasileiras ignoradas nos circuitos científicos internacionais.
Desde que comecei a dar aulas e conferências, trinta anos atrás, notei que, entre os alunos que me chegavam das universidades, os que mais se destacavam pelo radical desconhecimento da bibliografia da sua área profissional eram os psicólogos. Tudo o que sabiam era um pouco de behaviorismo, com umas pinceladas de Freud e Reich. Nunca tinham ouvido falar de Viktor Frankl, de Lipot Szondi, de Bettelheim, de Diel, de Le Senne, de Thibon e de mais algumas dezenas de autores de cuja existência, estupefatos, tiveram notícia pelas minhas aulas. Era incontornável a conclusão de que o Brasil tinha as piores faculdades de psicologia do mundo. Os microcéfalos do CFP são criaturas desse desastre pedagógico.
Mesmo fora do âmbito estritamente cristão, pouco resta das grandes descobertas psicológicas do século XX se as amputamos do legado místico-religioso em que se apóiam. Não há como escapar da noção de “psicologia judaica” quando se entende o sentido profundo das obras de Viktor Frankl, Lipot Szondi, Otto Rank, Bruno Bettelheim e do próprio Sigmund Freud (v. David Bakan, Sigmund Freud and the Jewish Mystical Tradition, Princeton, NJ, Van Nostrand, 1958). Nem menciono, por falta de espaço, a imensidão do campo da psicologia esotérica islâmica que vem sendo recuperado nas últimas décadas por estudiosos do porte de um Seyyed Hossein Nasr. Também omito, pela mesma razão, a herança vedantina e budista.
Ainda dentro da área da psicologia cristã, nenhum psicólogo sério pode ignorar hoje um estudo de importância universal como Principles of Neurotheology, de Andrew B. Newberg, bem como outras pesquisas correntes sobre a função terapêutica da prece, objeto de uma bibliografia acadêmica de dimensões oceânicas. A crença ingênua dos apedeutas do CFP, de que tudo aquilo que venha com o nome de “cristão” está fora do terreno da psicologia clínica, revela apenas uma ignorância assombrosa, incompatível não só com a sua pretensão de fiscalizar a atividade profissional dos psicólogos, mas com o simples exercício dessa atividade mesma.
Não, não estou defendendo a psicóloga Marisa Lobo ante o CFP. Estou defendendo, literalmente e sem meias medidas, o fechamento dessa entidade e a responsabilização penal de seus diretores por exercerem o ofício sem ter conhecimentos cuja falta seria indesculpável até mesmo em simples estudantes da matéria.
P.S. – Algumas excelentes contribuições à psicologia cristã partiram do Brasil. Exemplo: As Chaves do Inconsciente, de Renate Jost de Moraes, Rio, Agir, 1985.