olho do furacão Katrina, visto de um avião.
por Rodrigo Gurgel, em seu blog.
Minha maior luta, ou a parte mais difícil dos meus esforços diários, é recriar a ordem que me protege da vida comum. Não se trata de buscar uma forma de isolamento, mas de obedecer a uma organização da vida que, inserida no cotidiano, liberte-me da pressão do cotidiano, das falsas preocupações, das falsas urgências — e não me afaste do que é essencial.2
Trata-se de reconstruir, a cada dia, uma nova forma de olhar a vida, de organizar os elementos que a compõem, concedendo a cada um sua real, verdadeira importância — e buscando, sob a aparência do que necessita ser feito, dos meus deveres, um vínculo com o que está além do tempo.
Lembro-me de que, na adolescência, no inverno, o sol não havia nascido quando eu saía de minha casa, um sobradinho na rua 11 de Junho, e caminhava até o ponto mais alto do Anhangabaú para assistir à missa no Carmelo. Nas manhãs mais frias, não passávamos de quatro ou cinco encapotados sob a penumbra da nave. O sino tocava, as irmãs abriam as portas da clausura no altar, afastavam as cortinas escuras e, protegidas pelas grades, começavam a cantar. O celebrante, alto, frágil; sua voz, em certos momentos, não passava de um sussurro, diálogo pessoal com a Vítima cuja expiação se repetia à nossa frente. Víamos, devagar, a luz da manhã romper o vitral de São Simão Stock e tingir de colorido os bancos de madeira, enquanto o sacerdote erguia o verdadeiro Sol, alvo e puro em sua absoluta santidade.
Quando eu cruzava o jardim, o orvalho brilhava nas folhagens — e fechando o portão de ferro às minhas costas, empreendia, agora aquecido, o caminho de volta.
Por mais que me esforce, não consigo lembrar dos meus pensamentos naquelas manhãs — e isso me revela que eu era feliz. Mas ao rever tudo novamente descubro que aqueles dias não eram compostos apenas de um conjunto agradável de sentimentos. Não. A liturgia diária ampliava-se para muito antes e muito depois da missa, como o sino que, vibrando de um ponto distante, sobranceia o mundo, cria uma atmosfera que permanece para além da última nota.
Que lição, passados mais de quarenta anos, extraio dessas memórias? A criação de uma ordem particular — uma ordem pessoal dentro da desordem — é o primeiro passo para conceder às coisas o seu verdadeiro peso, a sua real importância.5
A missa matinal iniciava a grande liturgia cotidiana, uma série de atitudes, ou melhor, de compromissos com aquilo que meu íntimo necessitava: a leitura, o estudo, a escrita, mas também as obrigações quase sempre tediosas do colégio, a convivência familiar, a diversão com poucos amigos. Eu estava em tudo, colocava-me em tudo — mas, ao mesmo tempo, permanecia atado ao silêncio, à penumbra da capela, às vozes quase infantis das irmãs, ao mistério que me era concedido reviver a cada manhã.
Anos depois, encontrei, no romancista Saul Bellow, a mesma certeza. Para ele, a arte tinha “a ver com a conquista da quietude no meio do caos. Uma quietude que caracteriza a prece, também, e o olho do ciclone. Deter a atenção em meio à distração”.
Para Saul Bellow, escrever um romance é criar “uma espécie de abrigo temporário, uma choupana onde o espírito vem buscar guarida. Um romance se equilibra entre algumas poucas impressões autênticas e a multidão de impressões falsas que mascaram aquilo a que chamamos vida”.
Mas para criar uma ordem que possa oferecer, como Bellow pretendia com seus romances, “sentido, harmonia, e até justiça”, é necessário instaurar essa ordem, antes de tudo, em nosso espírito.
Essa construção não é fácil. Estou sempre a um passo de alcançá-la — e sempre a um passo de perdê-la. Ela exige não rigidez, mas atenção constante, pois o caos, o olho do ciclone, a loucura mundana está sempre tentando nos hipnotizar. Em meio a esforços aparentemente ineficazes, vou me desprendendo, passo a passo, das superficialidades, reencontro minhas intuições e, de repente, estou reinserido naquele mesmo rito da adolescência — e experimento prazer, alegria.
Recriar a ordem é um exercício diário de paciência. Mas um exercício comandado pela esperança. Um exercício que recusa a vida decadente da nossa civilização, crivada de barulho, informações desconexas e inúteis, palavrório, diferentes formas de tosquedade. Os frutos muitas vezes não são visíveis, palpáveis. Algo parece sempre escapar. E então recordo-me de Simone Weil: “Se há um verdadeiro desejo, se o objeto do desejo é verdadeiramente a luz, o desejo de luz produz luz”. Não há outra forma de pertencer à vida, de cumprir minhas obrigações, de seguir minha consciência: em meio às distrações do ciclone, encontrar o que é duradouro, transcendente, essencial — criar unidade.3 É a pequena resposta que posso dar ao mundo.
Fonte:
http://dinets.info/weather2.htm