Por Theodore Dalrymple. Leia o artigo original aqui.
Quando os prisioneiros são liberados da prisão, eles costumam dizer que pagaram sua dívida com a sociedade. Isso é absurdo, claro: o crime não é uma questão de contabilidade de dupla entrada. Você não pode pagar uma dívida por ter causado uma despesa ainda maior, nem pode pagar antecipadamente por um assalto a banco, oferecendo-se para cumprir uma sentença de prisão antes de cometer o crime. Talvez, metaforicamente falando, a lousa seja limpa quando um prisioneiro for libertado da prisão, mas a dívida não fica paga.
Seria tão absurdo para mim dizer, em minha aposentadoria iminente depois de 14 anos de meu trabalho no hospital e na prisão, que paguei minha dívida com a sociedade. Eu tinha a opção de fazer algo mais agradável se quisesse, e recebi, se não de modo beneficente, pelo menos adequadamente. Escolhi o bairro desagradável em que cliniquei porque, medicamente falando, os pobres são mais interessantes, pelo menos para mim, do que os ricos: sua patologia é mais florida, sua necessidade de atenção é maior. Seus dilemas, se mais crus, me parecem mais convincentes, mais próximos dos fundamentos da existência humana. Sem dúvida, também senti que meus serviços seriam mais valiosos lá: em outras palavras, eu tinha algum tipo de obrigação a cumprir. Talvez por essa razão, como o prisioneiro em sua libertação, sinto que paguei minha dívida para com a sociedade. Certamente, o trabalho cobrou um pedágio de mim, e é hora de fazer outra coisa. Alguém pode lutar contra a patologia social metastizante da Grã-Bretanha, enquanto eu levo uma vida esteticamente mais agradável para mim.
Meu trabalho me levou a tornar-me, talvez, doentiamente preocupado com o problema do mal. Por que as pessoas cometem o mal? Quais condições permitem que ele floresça? Como ele é melhor prevenido e, quando necessário, suprimido? Cada vez que ouço um paciente relatando a crueldade a que ele foi submetido, ou cometeu (e eu escutei vários desses pacientes todos os dias durante 14 anos), essas questões giram, incessantemente, em minha mente.
Sem dúvida, minhas experiências anteriores fomentaram minha preocupação com esse problema. Minha mãe foi uma refugiada da Alemanha nazista e, embora falasse muito pouco de sua vida antes da sua vinda à Grã-Bretanha, o mero fato de que havia muito do que ela não falava dava ao mal uma presença fantasmagórica em nossa casa.
Mais tarde, passei vários anos viajando pelo mundo, muitas vezes em lugares onde a atrocidade tinha estado recentemente, ou ainda estava sendo cometida. Na América Central, testemunhei uma guerra civil travada entre grupos de guerrilha com a intenção de impor a tirania totalitária em suas sociedades, combatidas por exércitos que não hesitavam em recorrer ao massacre. Na Guiné Equatorial, o atual ditador era o sobrinho e capanga do último ditador, que havia matado ou levado ao exílio um terço da população, executando até a última pessoa que usava óculos ou possuía uma página impressa, por ser um intelectual descontente ou potencialmente descontente. Na Libéria, visitei uma igreja na qual mais de 600 pessoas se refugiaram e foram massacradas, possivelmente pelo próprio presidente (que em breve será filmado sendo torturado até a morte). Os contornos dos corpos ainda eram visíveis sobre o sangue seco no chão, e o longo amontoado da vala comum começava a poucos metros da entrada. Na Coréia do Norte, vi o apogeu da tirania, milhões de pessoas em reverência abjeta e aterrorizada a um culto à personalidade cujo objeto, o Grande Líder Kim Il Sung, fazia o Rei Sol parecer a personificação da modéstia.
Contudo, todos estes foram males políticos, dos quais meu próprio país tinha escapado inteiramente. Otimisticamente, supus que, na ausência das piores deformações políticas, o mal generalizado era impossível. Eu logo descobri meu erro. É claro que nada do que eu vi em uma favela britânica se aproximou da escala ou da profundidade do que eu testemunhei em outros lugares. Bater uma mulher por motivos de ciúmes, trancá-la em um armário, quebrar os braços deliberadamente, por mais terrível que seja, não é o mesmo, nem de longe, com massacres. Mais do que o suficiente das restrições constitucionais, tradicionais, institucionais e sociais sobre o mal político em grande escala ainda existiam na Grã-Bretanha para impedir algo parecido com o que eu havia testemunhado em outros lugares.
No entanto, a escala do mal de um homem não é inteiramente medida por suas conseqüências práticas. Homens cometem o mal dentro do escopo disponível para eles. Alguns gênios do mal, é claro, dedicam suas vidas a ampliar esse escopo o máximo possível, mas esse personagem ainda não surgiu na Grã-Bretanha, e a maioria dos malfeitores aproveita ao máximo suas oportunidades. Eles fazem o que podem fazer.
Em todo caso, a extensão do mal que encontrei, embora muito mais modesta do que os desastres da história moderna, é, não obstante, impressionante. Do ponto de vista de uma enfermaria de seis camas, eu já conheci pelo menos 5.000 perpetradores do tipo de violência que acabei de descrever e 5.000 vítimas dela: quase 1% da população da minha cidade – ou uma porcentagem maior, se considera-se a especificidade por idade do comportamento. E quando você pega a história de vida dessas pessoas, como eu, você logo percebe que sua existência é tão saturada de violência arbitrária quanto a dos habitantes de muitas ditaduras. Em vez de um ditador, no entanto, existem milhares, cada um deles o governante absoluto de sua própria pequena esfera, seu poder circunscrito pela proximidade de outro como ele.
Conflitos violentos, não confinados à casa e ao lar, se espalham pelas ruas. Além disso, descobri que cidades britânicas como a minha tinham até câmaras de tortura: administradas não pelo governo, como nas ditaduras, mas pelos representantes do empreendimento de favelas, os traficantes de drogas. Homens e mulheres jovens em débito com traficantes de drogas são sequestrados, levados para as câmaras de tortura, atados às camas e espancados ou açoitados. Compunção não há nenhuma – apenas um medo residual das conseqüências de ir longe demais.
Talvez a característica mais alarmante deste mal de baixo nível, mas endêmico, o que o aproxima da concepção do pecado original, é que ele é voluntário e espontâneo. Ninguém exige que as pessoas o cometam. Nas piores ditaduras, alguns dos homens e mulheres maus e comuns fazem isso por medo de não cometê-lo. Lá, a bondade requer heroísmo. Na União Soviética, na década de 1930, por exemplo, um homem que deixasse de denunciar uma piada política às autoridades era culpado de uma ofensa que poderia levar à deportação ou à morte. Mas na Grã-Bretanha moderna, não existem tais condições: o governo não exige que os cidadãos se comportem como eu descrevi e os castiguem, se não o fizerem. O mal é escolhido livremente.
Não que o governo seja inocente no assunto – longe disso. Os intelectuais propuseram a ideia de que o homem deveria ser libertado das amarras da convenção social e do autocontrole, e o governo, sem qualquer exigência de baixo, promulgou leis que promoviam um comportamento desenfreado e criaram um sistema de proteção que protegia as pessoas de algumas de suas consequências econômicas. . Quando as barreiras para o mal são derrubadas, ele floresce; e nunca mais serei tentado a acreditar na bondade fundamental do homem, ou que o mal é algo excepcional ou alheio à natureza humana.
Claro, minha experiência pessoal é apenas isso: experiência pessoal. Certamente olhei para o mundo social da minha cidade e do meu país de um ponto de vista peculiar e possivelmente não representativo, de uma prisão e de uma enfermaria onde praticamente todos os pacientes tentaram se matar, ou pelo menos fizeram gestos suicidas. Mas não é uma experiência pessoal pequena ou leve, e cada um dos meus milhares, até mesmo milhares de casos, me deu uma janela para o mundo em que essa pessoa vive.
E quando minha mãe me pergunta se não corro o risco de deixar minha experiência pessoal me amargurar ou fazer com que eu olhe para o mundo através de óculos cor de bile, pergunto por que ela acha que ela, em comum com todos os idosos da Grã-Bretanha. hoje, sente a necessidade de estar em casa ao pôr-do-sol ou enfrentar as consequências, e por que isso deveria acontecer em um país que, dentro da memória viva, era cumpridor da lei e seguro? Ela mesma não me disse que, quando jovem, durante os apagões nas Blitz, ela se sentia perfeitamente segura, pelo menos das depredações de seus concidadãos, voltando para casa na total escuridão, e nunca lhe ocorreu que pudesse ser vítima de um crime, ao passo que, hoje em dia, basta ela colocar o nariz para fora da porta ao entardecer para não pensar em mais nada? Não é verdade que a sua bolsa tenha sido roubada duas vezes nos últimos dois anos, em plena luz do dia, e não é verdade que as estatísticas – por mais manipuladas pelos governos para lhes dar o melhor brilho possível – confirmam a precisão das conclusões que tirei da minha experiência pessoal? Em 1921, o ano do nascimento de minha mãe, houve um crime registrado para cada 370 habitantes da Inglaterra e do País de Gales; 80 anos depois, era um para cada dez habitantes. Houve um aumento de 12 vezes desde 1941 e um aumento ainda maior nos crimes de violência. Assim, embora a experiência pessoal dificilmente seja um guia completo para a realidade social, os dados históricos certamente confirmam minhas impressões.
Um único caso pode ser esclarecedor, especialmente quando é estatisticamente banal – em outras palavras, nada excepcional. Ontem, por exemplo, uma mulher de 21 anos me consultou, dizendo estar deprimida. Ela havia engolido uma overdose de antidepressivos e depois chamou uma ambulância.
Há algo a ser dito aqui sobre a palavra “depressão”, que eliminou quase inteiramente a palavra e até mesmo o conceito de infelicidade da vida moderna. Dos milhares de pacientes que vi, apenas dois ou três já afirmaram ser infelizes: todos os outros disseram que estavam deprimidos. Essa mudança semântica é profundamente significativa, pois implica que a insatisfação com a vida é em si mesma patológica, uma condição médica, que é responsabilidade do médico aliviar por meios médicos. Todo mundo tem direito à saúde; a depressão não é saudável; portanto, todo mundo tem o direito de ser feliz (o oposto de estar deprimido). Essa ideia, por sua vez, implica que o estado de espírito de alguém, ou o humor de alguém, é ou deveria ser independente da maneira como se vive a vida, uma crença que deve privar a existência humana de todo significado, desconectando radicalmente a recompensa da conduta.
Um pas de deux ridículo entre médico e paciente se segue: o paciente finge estar doente e o médico finge curá-lo. No processo, o paciente fica intencionalmente cego para a conduta que inevitavelmente causa sua infelicidade, para começar. Tenho, portanto, percebido que uma das tarefas mais importantes do médico hoje é a negação de seu próprio poder e responsabilidade. A noção do paciente de que ele está doente atrapalha sua compreensão da situação, sem a qual a mudança moral não pode ocorrer. O médico que finge tratar é um obstáculo para essa mudança, ofuscando em vez de esclarecer.
Minha paciente já teve três filhos de três homens diferentes, o que não é incomum entre meus pacientes, ou mesmo no país como um todo. O pai de seu primeiro filho fora violento e ela o abandonara; o segundo morreu em um acidente enquanto dirigia um carro roubado; o terceiro, com quem ela estava morando, exigira que ela deixasse seu apartamento porque, uma semana depois do nascimento do filho, ele decidira que não queria mais morar com ela. (A descoberta da incompatibilidade uma semana depois do nascimento de uma criança é agora tão comum a ponto de ser estatisticamente normal.) Ela não tinha para onde ir, ninguém a quem recorrer, e o hospital era um santuário temporário para seus infortúnios. Ela esperava que lhe arrumássemos uma acomodação.
Ela não podia voltar para a mãe, por causa do conflito com seu “padrasto”, ou o último namorado de sua mãe, que, na verdade, era apenas nove anos mais velho que ela e sete anos mais novo que sua mãe. Essa compressão das gerações também é, agora, um padrão comum e raramente é uma receita para a felicidade. (Escusado será dizer que seu próprio pai havia desaparecido em seu nascimento, e ela nunca o vira desde então.) O último namorado neste tipo de ménage ou quer a filha por perto para abusar dela sexualmente, ou então ela quer ela saiar de casa por ser um incômodo e uma despesa desnecessária. Esse namorado queria que ela saísse de casa e começou a criar uma atmosfera certa para fazê-la sair o mais rápido possível.
O pai de seu primeiro filho havia, claro, reconhecido sua vulnerabilidade. Uma menina de 16 anos que vive sozinha é uma presa fácil. Ele a espancou desde o início, estando embriagado, sendo possessivo e ciumento, além de ser flagrantemente infiel. Ela pensou que uma criança o tornaria mais responsável – deixá-lo sóbrio e acalmá-lo. Isso teve o efeito inverso. Ela o deixou.
O pai de seu segundo filho era um criminoso de carreira, já preso várias vezes. Um viciado em drogas que tomava qualquer droga que conseguisse, ele morreu sob a sua influência. Ela sabia tudo sobre o passado dele antes de ter o filho dele.
O pai de seu terceiro filho era muito mais velho que ela. Foi ele quem sugeriu que eles tivessem um filho – na verdade, ele exigira isso como uma condição para ficar com ela. Ele já tinha cinco filhos com três mulheres diferentes, nenhum dos quais ele sustentara de forma nenhuma.
As condições para a perpetuação do mal estavam agora completas. Ela era uma jovem que não queria ficar sozinha, sem um homem, por muito tempo; mas com três filhos já, ela atrairia exatamente o tipo de homem, como o pai de seu primeiro filho – dos quais agora existem muitos – à procura de mulheres vulneráveis e exploráveis. Mais do que provável, pelo menos um deles (pois, sem dúvida, haveria uma sucessão deles) abusaria de seus filhos sexualmente, fisicamente ou das duas formas.
É claro que ela era uma vítima do comportamento de sua mãe numa época em que ela tinha pouco controle sobre seu destino. Sua mãe pensava que sua ligação sexual era mais importante do que o bem-estar de sua filha, uma maneira comum de pensar na atual Inglaterra da assistência social. Naquele mesmo dia, por exemplo, fui consultado por uma jovem cujo consorte da mãe a estuprara muitas vezes entre as idades de oito e quinze anos, com pleno conhecimento da mãe. Sua mãe permitira isso apenas para que seu relacionamento com seu consorte pudesse continuar. Pode acontecer que minha paciente um dia faça a mesma coisa.
Minha paciente, no entanto, não era apenas uma vítima de sua mãe: ela sabia que tinha filhos de homens dos quais nada de bom poderia se esperar. Ela sabia perfeitamente bem as conseqüências e o significado do que estava fazendo, pois sua reação a algo que eu disse a ela – e disse a centenas de pacientes do sexo feminino em uma situação semelhante – provou: da próxima vez que você estiver pensando em sair com um homem, traga-o para minha inspeção, e eu lhe direi se você puder sair com ele.
Isso sempre faz a mais miserável, a mais “deprimida” das mulheres sorrir largamente ou rir com vontade. Elas sabem exatamente o que quero dizer, e não preciso dizer mais claramente. Elas sabem que eu quero dizer que a maioria dos homens que elas escolheram tem seu mal escrito por toda parte, às vezes literalmente na forma de tatuagens, dizendo “FUCK OFF” ou “MAD DOG“. Elas entendem que se eu puder identificar o mal instantaneamente, porque elas sabem o que eu procuraria, elas também podem – e, portanto, são em grande parte responsáveis por sua própria desgraça nas mãos de homens maus.
Além disso, elas estão cientes de que eu acredito que é tanto tolo quanto perverso ter filhos com homens sem considerar nem mesmo por um segundo ou uma fração de segundo se os homens têm alguma qualidade que possa torná-los bons pais. Os erros são possíveis, é claro: um homem pode não ser o esperado. Mas nem mesmo considerar a questão é agir tão irresponsavelmente quanto é possível para um ser humano agir. É aumentar conscientemente a soma do mal no mundo e, mais cedo ou mais tarde, o somatório de pequenos males leva ao triunfo do próprio mal.
Minha paciente não começou com a intenção de incentivar, muito menos de cometer, o mal. E, no entanto, sua recusa em levar a sério e agir de acordo com os sinais que ela via e o conhecimento que ela tinha não era consequência da cegueira e da ignorância. Era totalmente voluntarioso. Ela sabia, por experiência própria, e de muitas pessoas ao seu redor, que suas escolhas, baseadas no prazer ou no desejo do momento, levariam à infelicidade ao sofrimento não apenas de si mesma, mas – especialmente – de seus próprios filhos.
Isso realmente não é tanto a banalidade quanto a frivolidade do mal: a elevação do prazer passageiro sobre a infelicidade de longo prazo de outros a quem se deve uma obrigação. Que melhor expressão do que a frivolidade do mal descreve a conduta de uma mãe que expulsa sua própria filha, de 14 anos, de casa porque seu último namorado não a quer em casa? E qual expressão melhor descreve a atitude daqueles intelectuais que vêem nessa conduta apenas uma extensão da liberdade e escolha humanas, outro fio da rica tapeçaria da vida?
Os homens nessas situações também sabem perfeitamente o significado e as conseqüências do que estão fazendo. No mesmo dia em que vi a paciente que acabei de descrever, um homem de 25 anos entrou em nossa enfermaria, precisando de uma operação para remover papelotes de cocaína embrulhados em papel-alumínio, que ele havia engolido para evitar ser pego pela polícia na posse deles. (Se um pacote tivesse estourado, ele teria morrido imediatamente.) Acontece que ele acabara de deixar sua última namorada – uma semana depois de ela ter dado à luz a filha deles. Eles não estavam se dando bem, ele disse; ele precisava de seu espaço. Na criança, ele não pensou nem por um instante.
Perguntei-lhe se ele tinha outros filhos.
– Quatro, ele respondeu.
– Quantas mães?
– Três.
– Você vê algum de seus filhos?
Ele meneou a cabeça. Supostamente é o dever do médico não julgar como seus pacientes optaram por viver, mas acho que posso ter levantado ligeiramente as sobrancelhas. De qualquer forma, o paciente sentiu o cheiro da minha desaprovação.
– Eu sei – disse ele – Eu sei. Não me diga.
Essas palavras foram uma completa confissão de culpa. Tive centenas de conversas com homens que abandonaram seus filhos dessa maneira, e todos sabem perfeitamente quais são as conseqüências para a mãe e, mais importante, para as crianças. Todos sabem que estão condenando seus filhos a vidas de brutalidade, pobreza, abuso e desesperança. Eles mesmos me dizem isso. E, no entanto, eles o fazem repetidamente, de tal forma que eu deveria imaginar que quase um quarto das crianças britânicas, agora, é educada dessa maneira.
O resultado é uma crescente onda de negligência, crueldade, sadismo e alegria maligna que me impressiona e me alarma. Estou mais horrorizado depois de 14 anos do que no dia em que comecei.
De onde vem esse mal? Há obviamente algo falho no coração do homem que o leva a querer se comportar dessa maneira depravada – o legado do pecado original, falando metaforicamente. Mas se, não há muito tempo, tal conduta era muito menos difundida do que é agora (em uma época de muito menor prosperidade, seja lembrada por aqueles que pensam que a pobreza explica tudo), então algo mais é necessário para explicá-la.
Uma condição necessária, embora não suficiente, é o estado de assistência social, que torna possível, e às vezes vantajoso, comportar-se assim. Assim como o FMI é o banco de última instância, incentivar os bancos comerciais a conceder empréstimos insensatos aos países que sabem que o FMI resgatará, de modo que o Estado é o pai de último recurso – ou, mais frequentemente, de primeiro recurso. O Estado, guiado pela filosofia aparentemente generosa e humana de que nenhuma criança, seja qual for sua origem, deveria sofrer privação, dá assistência a qualquer criança, ou melhor, à mãe de qualquer criança, uma vez que ela tenha surgido. Em matéria de habitação pública, é realmente vantajoso para uma mãe se colocar em desvantagem, ser mãe solteira, sem apoio dos pais dos filhos e dependente do estado de renda. Ela é então uma prioridade; ela não vai pagar impostos locais, aluguel, nem contas de serviços públicos.
Quanto aos homens, o Estado os absolve de toda a responsabilidade por seus filhos. O estado é agora pai da criança. O pai biológico está, portanto, livre para usar qualquer renda que tenha como trocado, para entretenimento e pequenas guloseimas. Ele é assim reduzido ao status de criança, embora seja uma criança mimada com as capacidades físicas de um homem: petulante, exigente, indeciso, egocêntrico e violento, se ele não conseguir o que quer. A violência aumenta e se torna um hábito. Um pirralho mimado se torna um tirano do mal.
Mas se o estado de assistência social é uma condição necessária para a propagação do mal, não é suficiente. Afinal, o estado de assistência social britânico não é o mais extenso nem o mais generoso do mundo, e ainda assim nossas taxas de patologia social – embriaguez pública, consumo de drogas, gravidez na adolescência, doenças venéreas, vandalismo, criminalidade – são as mais altas do mundo. Algo mais foi necessário para produzir esse resultado.
Aqui nós entramos no reino da cultura e das idéias. Pois é necessário não apenas acreditar que é economicamente viável se comportar da maneira irresponsável e egoísta que descrevi, mas também acreditar que é moralmente permissível fazê-lo. E essa idéia tem sido propagada pela elite intelectual na Grã-Bretanha por muitos anos, mais assiduamente do que em qualquer outro lugar, na medida em que agora é dada como certa. Houve uma longa marcha não apenas pelas instituições, mas pelas mentes dos jovens. Quando os jovens querem se elogiar, eles se descrevem como “sem julgamentos”. Para eles, a mais alta forma de moralidade é a amoralidade.
Houve uma aliança profana entre os da esquerda, que acreditam que o homem é dotado de direitos, mas não de deveres, e libertários da direita, que acreditam que a escolha do consumidor é a resposta para todas as questões sociais, uma idéia adotada entusiasticamente pela esquerda. precisamente naquelas áreas onde não se aplica. Assim, as pessoas têm o direito de gerar filhos da maneira que quiserem, e as crianças, é claro, têm o direito de não serem privadas de nada, pelo menos de qualquer coisa material. Como homens e mulheres se associam e têm filhos é meramente uma questão de escolha do consumidor, de nenhuma consequência moral mais do que a escolha entre chocolate escuro e chocolate de leite, e o Estado não deve discriminar entre diferentes formas de associação e criação de filhos, mesmo que essa não discriminação tenha o mesmo efeito que a neutralidade britânica e francesa durante a Guerra Civil Espanhola.
As conseqüências para as crianças e para a sociedade não entram na questão: pois, em qualquer caso, é função do estado atenuar, pela tributação redistributiva, os efeitos materiais da irresponsabilidade individual, e melhorar os efeitos emocionais, educacionais e espirituais por um exército de assistentes sociais, psicólogos, educadores, conselheiros e semelhantes, que, por sua vez, formam um poderoso interesse de dependência do governo.
Então, enquanto meus pacientes sabem, em seus corações, que o que estão fazendo é errado, e pior do que errado, no entanto, eles são incentivados a fazê-lo pela forte crença de que eles têm o direito de fazê-lo, porque tudo é meramente uma questão de escolha. Quase ninguém na Inglaterra questiona publicamente essa crença. Tampouco qualquer político tem coragem de exigir a retirada do subsídio público que permite a intensificação do mal que vi nos últimos 14 anos – violência, estupro, intimidação, crueldade, dependência de drogas, negligência – florescer de maneira tão exuberante. Com 40% das crianças na Grã-Bretanha nascidas fora do casamento, e a proporção ainda aumentando, e com o divórcio sendo a norma e não a exceção, logo não haverá um distrito eleitoral para a reversão. Já se considera suicídio eleitoral defendê-lo por aqueles que, em seus corações, sabem que essa reversão é necessária.
Não tenho certeza se eles estão certos. Eles não têm coragem. Minha única causa de otimismo durante os últimos 14 anos tem sido o fato de que meus pacientes, com algumas exceções, podem ser levados a ver a verdade do que eu digo: que eles não estão deprimidos; são infelizes – e são infelizes porque escolheram viver de um modo que não deveriam viver e no qual é impossível ser feliz. Sem exceção, eles dizem que não querem que seus filhos vivam como eles viveram. Mas as pressões sociais, econômicas e ideológicas – e, acima de tudo, o exemplo dos pais – tornam provável que as escolhas de seus filhos sejam tão ruins quanto as deles.
Em última análise, a covardia moral das elites intelectuais e políticas é responsável pelo contínuo desastre social que atingiu o Reino Unido, um desastre cujas conseqüências sociais e econômicas ainda não foram vistas. Uma forte recessão econômica exporia até que ponto as políticas de sucessivos governos, todas na direção da libertinagem, atomizaram a sociedade britânica, de modo que toda a solidariedade social dentro de famílias e comunidades, tão protetora em tempos de dificuldades, tenha sido destruída. As elites não podem sequer reconhecer o que aconteceu, por mais óbvio que seja, pois fazê-lo seria admitir sua responsabilidade passada por isso, e isso faria com que se sentissem mal. É melhor que milhões de pessoas vivam em perversão e miséria do que se sentirem mal consigo mesmas – outro aspecto da frivolidade do mal. Além disso, se os membros da elite reconhecerem o desastre social provocado pelo seu libertinismo ideológico, eles poderiam ser convidados a colocar restrições em seus próprios comportamentos, pois você não pode exigir por muito tempo dos outros o que você próprio se recusa a fazer.
Há prazeres, sem dúvida, a se ganhar em chorar no deserto, em ser um homem que pensa ter visto mais longe e mais intensamente do que outros, mas eles escasseiam com o tempo. O deserto perdeu seus encantos para mim.
Estou indo embora – espero que para sempre.
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